Librivox reading of Amor de Perdição (1862) by  Camilo Castelo Branco; first section -- corresponding text

1. AMOR DE PERDIÇÃO (ADP00a01)

2. POR CAMILO CASTELO BRANCO.

3. Dedicatória e Introdução

4. AO ILLUSTRISSIMO E EXCELENTISSIMO SENHOR

5. Antônio Maria de Fontes Pereira de Melo

6. Dedica O Author

7. Illustrissimo E Excelentissimo Senhor

8. Ha de pensar muita gente

9. que Vossa Excelência não dá valor algum a este livro,

10. que a minha gratidão lhe dedica,

11. porque muita gente está persuadida

12. que ministros do estado não lêem novellas.

13. É um engano. Uma vez

14. ouvi eu um collega de Vossa Excelência

15. discorrer no parlamento ácerca de caminhos de ferro.

16. Com tanto engenho o fazia,

17. de tantas flôres matizára aquella [árida] materia,

18. que me deleitou ouvil-o.

19. Na noite d'esse dia

20. encontrei o collega de Vossa Excelência a lêr

21. a Fanny, aquella Fanny,

22. que sabia tanto de caminhos de ferro como eu.

23. Que Vossa Excelência tem romances na sua bibliotheca,

24. é convicção minha.

25. Que lá tem alguns, que não leu porque o tempo lhe falece,

26. e outros porque não merecem tempo,

27. também o creio.

28. Dê Vossa Excelência,

29. no lote dos segundos,

30. um logar a este livro,

31. e terá assim

32. Vossa Excelência

33. significado que o recebe

34. e aprecia,

35. por levar em si o nome

36. do mais agradecido e respeitador criado

37. de Vossa Excelência

38. Na cadêa da Relação do Porto,

39. aos 26 de Setembro de 1861.

40. Camillo Castello Branco.

41. Introdução

42. Folheando os livros de antigos assentamentos, no cartorio das cadêas da Relação do Porto, (ADP00b01)

43. li, no das entradas dos presos (b02)

44. desde 1803 a 1805,

45. a folhas 232, o seguinte:

46. Simão Antonio Botelho,

47. que assim disse chamar-se,

48. ser solteiro, e estudante na Universidade de Coimbra,

49. natural da cidade de Lisboa,

50. e assistente na occasião de sua prisão

51. na cidade de Vizeu,

52. idade de dezoito annos,

53. filho de Domingos José Correia Botelho

54. e de D. Rita Preciosa Caldeirão Castelo-Branco,

55. estatura ordinaria, cara redonda,

56. olhos castanhos, cabelo e barba preta,

57. vestido com jaqueta de baetão azul,

58. colête de fustão pintado

59. e calça de panno pedrez.

60. E fiz este assento, que assignei.

61. Filippe Moreira Dias.

62. Á margem esquerda d'este assento está escripto:

63. Foi para a India em 17 de Março de 1807.

64. Não será fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor,

65. se cuido que o degredo de um moço de dezoito annos

66. lhe havia de fazer dó.

67. Dezoito annos!

68. O arrebol dourado e escarlate da manhã da vida!

69. As louçanias do coração que ainda não sonha em fructos,

70. e todo se embalsama no perfume das flôres!

71. Dezoito annos!

72. O amor d'aquella idade!

73. A passagem do seio da familia, dos braços de mãe, dos beijos das irmãs

74. para as caricias

75. mais dôces da virgem,

76. que se lhe abre ao lado como flôr da mesma sazão

77. e dos mesmos aromas,

78. e á mesma hora da vida!

79. Dezoito annos!...

80. E degradado da patria, do amor, e da familia!

81. Nunca mais o ceo de Portugal, [nem liberdade, nem irmãos,] nem mãe, nem rehabilitação,

82. nem dignidade,

83. nem um amigo!...

84. É triste!

85. O leitor decerto se compungiria;

86. e a leitora

87. se lhe dissessem, em menos de uma linha, a historia d'aquelles dezoito annos,

88. choraria!

89. Amou,

90. perdeu-se,

91. e morreu amando.

92. É a história.

93. E história assim poderá ouvi-la

94. a olhos enxutos a mulher,

95. a creatura mais bem formada das branduras da piedade,

96. a que por vezes traz comsigo do céu um reflexo

97. da divina misericordia?!

98. Essa, a minha leitora,

99. a carinhosa amiga de todos os infelizes

100. não choraria se lhe dissessem que o pobre moço perdêra honra,

101. rehabilitação, patria, liberdade,

102. irmãs, mãe, vida,

103. tudo, por amor da primeira mulher

104. que o despertou do seu dormir de innocentes desejos?!

105. Chorava, chorava!

106. Assim eu lhe soubesse dizer

107. o doloroso sobressalto que me causaram aquellas linhas,

108. de propósito procuradas, e lidas com amargura e respeito

109. e, ao mesmo tempo, ódio.

110. Ódio, sim...

111. A tempo verão

112. se é perdoável o ódio,

113. ou se antes me não fôra melhor

114. abrir mão desde já de uma história

115. que me póde acarear enojos dos frios julgadores do
coração,

116. e das sentenças que eu aqui lavrar

117. contra a falsa virtude de homens,

118. feitos bárbaros,

119. em nome de sua honra.

120. Fin de dedicatória e introdução